As pessoas sempre me perguntam: você tem religião? Você
acredita em Deus ou algo parecido? E eu sempre respondo: nunca me preocupei com
isso.
Minha resposta é honesta: de fato, nunca me preocupei com fé
e religião. Por isso sempre tive pouco pra dizer a respeito. Mas quando examino
devidamente minha memória, percebo que essa resposta esconde outros dois fatos...
Primeiro: eu me lembro de várias ocasiões, ao longo da minha
vida, em que me voltei para “algo superior a nós”, digamos assim. Ou seja, eu
sempre acreditei que existe alguma coisa além de mim, superior a mim. Sempre
tive uma fé, portanto. O que não me preocupava era dar nome à minha crença,
porque eu achava que isso me prenderia a alguma tradição, e eu queria negar
toda tradição; não queria prisões sobre a minha consciência. Afinal,
tratava-se, para mim, de uma experiência bastante íntima; conversar com essa
“divindade” era conversar comigo mesmo.
Segundo: refletindo sobre os momentos em que eu exercitava
essa fé, percebi que tinha outra forma de me relacionar com Deus, além das
religiões tradicionais. A minha forma era o estudo, que começou como uma
pesquisa pessoal ingênua - a qual implicava certo ceticismo e onde eu misturava
tudo o que minha cultura me oferecia. Depois essa forma se tornou uma
investigação científica, acadêmica, criteriosa e hipercrítica.
A percepção desses dois fatos me levou a algumas hipóteses
que se concatenam:
1) todo indivíduo tem ou é capaz de ter uma experiência
sensorial, subjetiva, psicológica e emotiva que excede o seu próprio ego. A
essa experiência damos o nome de divindade;
2) mas para vivenciar tal experiência é preciso notá-la,
tomar consciência dela, o que implica acreditar, confiar nela; isso é ter fé.
Para esse efeito, ter fé é confiar num princípio além de si próprio,
determinado pela cultura;
3) à forma que escolhemos para nos comunicar com a dita
experiência e exercitá-la é que damos o nome de religião, e existem vários
tipos de religião, inclusive o ceticismo (sim!) e a ciência;
4) se Deus é subjetivo, ele está na nossa consciência e desde
que todo indivíduo tenha uma consciência ele terá uma divindade;
5) tomando a consciência como um conjunto de valores que
introjetamos de nossa cultura, a divindade é a representação desse conjunto moral;
ela nada tem a ver, a priori, com misticismos (conquanto os misticismos sejam
formas de articular tais valores);
6) logo, um indivíduo que não tenha uma divindade e uma fé ou
que as negue será um psicopata (numa definição pueril, é claro, não criminal),
porque não terá ou negará a moral, isto é, algo que poderíamos chamar,
simploriamente, de psiquê;
7) se a religião é uma forma que comunica e organiza a
consciência e se a vida social consiste, entre outras coisas, na organização
dos indivíduos COM as suas consciências, então a religião organiza a vida
social;
8) logo, um indivíduo que não participa da religião coletiva
é um sociopata (novamente, numa definição simplista), pois ele não compartilha,
no final das contas, da organização social;
9) a fé e a religião, portanto, são indispensáveis à vida
social;
10) se a ciência é uma forma de religião e a política é uma
ciência - ou: se a política também é uma forma de organização da vida social -
então política e religião são a mesma coisa. Em suma, ciência = política =
religião. Poderíamos acrescentar outros elementos a esta equação, mas, para
começar, fiquemos por aqui.
É sobre esses temas, considerando esses argumentos,
desenvolvendo esse raciocínio e a partir dessas experiências que escreveremos
esta série de textos. Não para investigar a psicopatia ou a sociopatia, mas
para refletir sobre o que sejam fé, religião, ciência e política, sobre o lugar
que elas ocupam no nosso mundo e sobre o papel que desempenham em nossas vidas.
Texto excelente!
ResponderExcluirSua forma de ver a existência do divino é algo inédito pra mim, mas é perceptível que é fruto da visão de um historiador e isso é fantástico.
Não sou nenhum pesquisador, mas gosto bastante de estudar história, e foi muito esclarecedor quando percebi como a religião e a crença em algo maior foram base para o que seria considerado ético em vários povos ao longo da história como os egípcios, babilônios, judeus, gregos, romanos, vikings e até mesmo os chineses e os japoneses.
O modo de vida desses povos refletem suas religiões e seus mitos, pode parecer óbvio, mas pra mim foi incrível perceber como essas questões interferem até mesmo na sociedade de hoje, essa minha reflexão me leva a concordar com vários pontos do texto. Em primeira leitura, não tem nada que eu discorde (do ponto de vista crítico/filosófico, se fosse discordar de algo, teria que ser enquanto cristão protestante, mas não acho que essa discussão caiba aqui).
Parabéns! Aguardo ansiosamente pelos próximos textos!