PARTE I - A CORRUPÇÃO COMO TEATRO OU CORTINA DE FUMAÇA
Na introdução a esta série de textos eu usei a analogia do teatro. Poderia usar também a de cortina de fumaça.
Uma cortina de fumaça não é algo que não existe, mas é algo
que não tem fim em si mesmo. É só um disfarce pra acobertar algo. E é um
instrumento de ilusão, fuga e direcionamento. Pensemos num ninja usando uma
bomba de fumaça. Você se preocuparia com a fumaça ou com o ninja que a lançou?
Não se interroga a fumaça, mas o ninja que a lançou, porque a fumaça não tem nada a dizer; no máximo, ela é um indício de que o ninja quer se esconder.
Da mesma maneira, o teatro não tem fim em si mesmo: ele pretende transmitir uma mensagem. Aí, devemos indagar não apenas a peça teatral, mas quem a produziu, com que intenções, para que público. Não se interrogam os personagens nem os elementos cenográficos do teatro, porque eles não têm voz própria; são criações.
É dessa maneira que eu proponho que investiguemos o fenômeno
da corrupção, na ordem-do-dia em nosso país. Assim como uma cortina de fumaça,
para mim, parece que a corrupção não é uma verdade absoluta, em si mesma, não é
objeto unívoco, um dado "natural" da realidade; ela é um instrumento
de ação política. E, assim como um teatro, ela visa a alguma coisa além de si mesma.
Isso significa dizer que a corrupção é ilusória e não
existe, na realidade? Claro que não! Mas, embora ela exista, ela não é um autômato,
não têm vida própria. Ela é, em primeiríssimo lugar, o discurso de alguém
interessado numa mudança política – e, em segundo lugar, obra de alguém
interessado em apropriar-se da riqueza pública. Vejam: a corrupção não é ela; ela é
alguém. Foquemos no “alguém”, no interesse, na ação, na mudança.
Comecei esta série propondo também que a corrupção, ao contrário de ser um corpo estranho na política, FAZ PARTE DELA, É-LHE INERENTE, É UMA ENGRENAGEM DELA. Por trás da cortina do teatro, da cortina de fumaça, é esta a engrenagem que se oferece à nossa análise; é este o motor que devemos buscar compreender. A corrupção como dinâmica, como mecânica.
A princípio, ninguém, nem sequer os jornalistas e os cientistas políticos, entende a bagunça que se tornou o nosso cenário político, com tanto escândalo, tanta acusação, tanta delação premiada, tanta evidência, indício, prova, hipótese, possibilidade, achismo, opinião, desejo, projeto. Neste momento, eu acho que a filosofia, por seu ritmo mais lento, pausado e reflexivo, pode nos ajudar a encontrar uma escapatória neste vendaval de ideias, acontecimentos e palavras. A filosofia nos distancia dos fatos imediatos, cotidianos, das notícias, mas se nós já não conseguimos acompanhá-las, parece-me útil fazer essa pausa e nos aprofundar para além das manchetes diárias.
Mas superemos a cortina. Olhemos através dela. Como ação, a corrupção tem começo (nos sentidos de início e de motivação), meio (nos sentidos de desenvolvimento e de modus operandi) e fim (no duplo sentido de término e de finalidade). Aí eu acho que as coisas começam a fazer sentido. E é isso o que eu procurarei mostrar daqui em diante, na primeira parte desta série de breves ensaios.
Por ora, limito-me a frisar uma implicância de compreender a corrupção como ação política: no quadro dela, entendendo-a não como um fenômeno estático mas como um movimento, na sua trajetória, uma investigação - isto é, o combate e o controle da corrupção - só vai até aonde o interessado em conduzi-la quer, e na direção, no encalço de quem ele quiser. Não existe inquisição imparcial. A investigação contra a corrupção é, digamos, o instrumento pelo qual a própria corrupção pode, paradoxalmente, cumprir sua finalidade, que é a de interferir na política e mudar o poder. Ela pode ser iniciada por qualquer um, inclusive por um corrupto, bem como pode ser obstruída, controlada, exaltada ou censurada por qualquer um, inclusive alguém honesto. Só assim, entendendo a corrupção como uma ação política, é que compreenderemos como corruptos podem se apresentar como paladinos morais combatendo a corrupção, ou como acusações podem atingir qualquer pessoa indiscriminadamente, misturando inocentes e culpados e confundindo a opinião pública.
Porque, se a corrupção é uma ferramenta para se atingir uma outra finalidade, qual seja, uma troca no poder, o condutor da investigação, corrupto ou honesto, só se preocupará em apresentar à opinião pública um herói e um vilão, pois é assim que ele induzirá o apoio ou a repulsa da população a seus inimigos ou aliados. O investigador, longe de ser imparcial, conduz o combate a partir de sua própria fé e filiação política, não de julgamentos divinos. Neste sentido, seu objetivo primeiro é mudar o poder, não, afinal de contas, corrigir ou eliminar a corrupção - até porque, se ele o fizer, neutralizará a ferramenta que ele próprio tem para interferir na política em benefício próprio e de seu partido.
Quer uma prova disso? Observe todas as operações da PF contra a corrupção no Brasil, especialmente as mais recentes e, sobretudo, a Lava-Jato. Conte quantas vezes elas culminaram em prisões e isolamentos políticos de fulanos e ciclanos e quantas vezes elas atingiram o essencial para o país e para o patrimônio público, que são as reformas políticas e legislativas (que previnam ao invés de remediar a corrupção) e a restituição ao tesouro público daquilo que supostamente foi roubado, desviado, superfaturado ou privatizado.
Mesmo quando as sentenças dos juízes comportam sugestões e medidas como essas, não são elas que vão ocupar os noticiários. Porque o investigador (com a cumplicidade de uma mídia que, no Brasil, está longe de ser democratizada) não está interessado em proteger o bem público e neutralizar a corrupção; ele está interessado em neutralizar um adversário político. Por isso prender o corrupto é mais importante do que recuperar a riqueza roubada. Especialmente porque sendo o corrupto também um político - não um ladrão que fugirá imediatamente para gastar o que roubou - ele permanecerá interferindo na política se não for preso e exposto ao escracho público e, sendo ele um rival, o investigador não pode permitir isso; ele precisa neutralizar o agente, não o ato. É preciso que o ato, a corrupção, continue sendo possível e viável, porque é por meio dela que qualquer grupo político tomará ou conservará o poder, e é em nome do combate a ela que os investigadores poderão, sempre, agir em prol de seus interesses e partidos.
Em suma, no funcionamento de nossa política, infelizmente, gostemos e aceitemos ou não, é preciso que os corruptos sejam eliminados, mas que a corrupção permaneça livre para ser praticada. Ela só virá à tona quando um dos grupos nela envolvidos, por algum motivo, romper com o pacto de silêncio que torna todos os corruptos cúmplices entre si. Porém, enquanto essa aliança permanecer, enquanto ela encobrir os atos que privatizam o bem público (que é a definição mais antiga, geral e fundamental de corrupção) e permitirem que cada partido retire o seu "pedaço do bolo", isto é, o seu próprio benefício da corrupção do Estado, o fenômeno persistirá.
Continuarei desenvolvendo esses pontos nesta parte desta série. Aqui, por enquanto, a minha sugestão conclusiva é, na verdade, uma pergunta provocativa: quando o silêncio se rompe, se são os próprios corruptos a conduzir as investigações e se eles se beneficiam da corrupção, quererão eles acabar com ela ou apenas expor os atos dos adversários, enquanto encobrem os seus próprios, como um ninja que lança uma fumaça para se esconder e se mover em silêncio?
Partirei daqui no próximo texto.